Já me vi na fila da tutoria canina em três momentos na minha vida. No primeiro, ainda na adolescência, pedi um cachorro de presente. Não sabia cuidar de mim direito imagina dele, fora que a convivência com ele ainda foi recheada pelo medo que eu tinha de cachorro. Precisei assumir que não estava dando certo, e assim, o doguinho que na nossa casa foi batizado por mim como Ikki foi então doado para outros tutores.
A segunda vez, eu tinha 21 anos. Meu irmão, Lucas tinha mais proximidade com pets do que eu, assim foi adotado o Polo, batizado como Polanski Linklater Tarantino (por mim, claro), convivemos mais ou menos seis meses com Polo. Infelizmente ele foi atropelado na porta de casa no réveillon 2006/2007, após conseguir fugir do nosso quintal.
A terceira vez, eu tinha 22 anos, quando a baby Lolli chegou com todo seu charme. Nome de batismo que dei para ela, Lollipop Ava Gardner (2007 - 2022). Lucas ganhou a Lolli de presente, e foi sem dúvida o presente mais extraordinário que eu já ganhei.
Polo me ensinou a lidar com o meu medo de doguinhos, mas foi com a Lolli que eu definitivamente venci esse medo. Ela não tinha pretensão nenhuma de ensinar ninguém a ser tutor ou tutora dela. Não foi adestrada, mas tinha um instinto de autocuidado muito encantador.
A primeira morada de Lolli foi no quintal, ela viu que se tentou construir uma casinha para ela, mas nunca se concluiu. Ela tinha uma cadeira, pote de comida e água. Conviveu com galos, galinhas, pato, jabuti e inúmeros gatos. Poliamorosa e pansexual, Lolli amava e odiava vários gates ao mesmo tempo e sem distinguir gênero.
Para mim ser tutora de doguinho não era algo tranquilo. Principalmente porque me sentia cobrada a ser de uma determinada forma, aquela coisa de ter uma imagem padrão, junto a minha baixa estima e disponibilidade de me cobrar.
No sentido afetivo éramos livres, falava com a Lolli, convivia com ela quando desejava e/ou quando ela me chamava/chorava nos sete anos que ela morou no quintal. Já nos sete anos que ela morou dentro de casa, a gente ficou muito mais em contato, ela inclusive aprendeu a abrir a porta do meu quarto para entrar sempre que quisesse.
Era desafiador manter a higiene de Lolli, assim como aconteceu de estar tão desgastada com o trabalho/vida que me passei e deixei ela eventualmente sem estar com as vacinas atualizadas. Lidava com a vergonha e a culpa, me condenando, não me considerava uma boa tutora.
Estava muito disposta a estar com Lolli e observar ela, mas isso tinha ciclos e momentos. A pessoa que efetivamente cuidava diariamente de Lolli era minha mãe, Anna Helena.
Foram 14 anos de convivência com a Lolli, durante doze deles só foi necessário sair com ela para ir na clínica após o horário comercial em um momento, uma vez que ela foi mordida por um escorpião.
A ideia era cruzar ela com outro doguinho, mas não tive como fazer isso acontecer. Assim como não tive condições de castrar ela, principalmente por não conseguir me preparar para pagar e priorizar os cuidados com ela.
Assim, aos 13 anos ela teve um intenso mal estar e precisou ser castrada. Mais ou menos um ano após esse mal estar, me assustei em perceber que Lolli estava se desequilibrando e caindo sozinha. Saí com ela a meia-noite do domingo, 17 de outubro de 2021, de Uber com ela no colo, jurando que ela estava morrendo e depois foi que entendi que ela estava dormindo.
Chegando na clínica a veterinária não economizou e encheu a lista de possíveis diagnósticos: metástase, definitivamente foi o que mais me assustou. Ela observou que Lolli tinha nódulos nas mamas, sopro no coração, que estava acima do peso e por aí vai.
A menção do sobrepeso também pesou. Em específico porque esta veterinária e algumas outras quiseram justificar os desequilíbrios de Lolli por conta do sobrepeso. Além dos gatilhos já provocados em qualquer menção de que pessoas e/ou pet estão acima do peso. E a explicação para o desequilibro de Lolli nem era essa, ao ter pouco tempo depois dificuldade de se levantar sozinha, e ser examinada por uma neuro, ela ficou sob suspeita de hérnia de disco, e com diagnóstico de disfunção cognitiva.
Lolli estava frequentando até 2020 uma mesma pet shop, próxima de onde moramos, a qual a socorreu em 2020 quando ela precisou ser cadastrada com urgência. Por mais que eu seja muito grata aos cuidados que foram dados a ela, na cirurgia, pós-cirurgia e nos seis anos, ou mais, que ela foi atendida lá para banho e tosa. Não me senti acolhida pela linha defendida para os cuidados com cães idosos, a partir da visão de que o melhor seria cuidar de forma paliativa. E também não senti que a clínica compreendia o que os tutores de Lolli estavam vivendo em meio a pandemia.
Compreendi inclusive que eu demorei para entender que havia na medicina veterinária, aqueles veterinários que defenderiam opções de tratamento paliativas, e aqueles que defenderiam outras opções, inclusive algumas vistas como mais arriscadas.
Senti também na pele o quanto é custoso fazer exames, comprar remédios, arcar com cirurgia, pós-operatório, internação, consultas, e quanto mais as fazia mais parecia que tinha para fazer, e transparecia o quanto uma pessoa desempregada ou sem recursos fica impotente.
Eu como pessoa branca privilegiada tive dificuldades, principalmente por estar desempregada, cogitei várias vezes em fazer rifa ou financiamento coletivo, e não o fiz por vergonha. Me endividei e usei desesperadamente parte do recurso que tinha guardado.
Só entendi que não tinha conseguido expor uma das vivências mais angustiantes da minha vida e pedir publicamente ajuda, apenas no terceiro e último mês, em terapia, quando o meu psicólogo me disse que era lógico que eu pedisse ajuda.
E foi um choque, principalmente porque uma coisa que eu estava também fazendo era estudar sobre a vergonha através da leitura dos livros de Brené Brown. Mal tive tempo de lidar com a impossibilidade de dar voz a essa minha vulnerabilidade, uma vez que duas semanas depois, no dia 01 de fevereiro de 2022, Lolli veio a falecer.
Fiquei com desejo de escrever e por isso ainda aqui escrevo. Fiquei com desejo também de falar mais sobre cães idosos, desafios dos tratamentos caninos, e reflexões sobre o que é tutoria canina, o que por enquanto segue perdido. Eu só descobri muita coisa vivendo, possivelmente eu aprendi mais sobre tutoria nesses três últimos e intensos meses de convivência com Lolli, do que tive condições de me propor a aprender antes.
Foi necessário lidar com o diagnóstico de que ela estava com tumor no pulmão para que eu me revelasse para mim mesma alguém que não conseguiria aceitar que era válida a opção de deixar ela com o tumor, e abraçar os cuidados paliativos. Não me resignei a eles, pode ter ajudado a abreviar a vida dela ou não. Tinha mais que motivos para não submeter ela a cirurgia, mas ao mesmo tempo só conseguia sentir que eu estaria abraçando a esperança se arcasse com a cirurgia.
O tumor acabou sendo uma de muitas questões, tinha a anemia e a disfunção cognitiva também. E tinha apesar de querer cuidar dela, também uma vontade de estabelecer um limite, até também de desistir.
Emanei para o universo um pedido de que Lolli não partisse no final de 2021, e adoraria como falava para ela que a gente ainda tivesse muito para viver juntas. Mas eu também dizia para ela nos momentos mais difíceis que entenderia se ela precisasse partir, e eu perdi a conta de quantas vezes me despedi dela nesses últimos meses.
A partida dela foi extremamente sofrida, e ainda assim foi difícil receber a confirmação de que ela havia partido. Por mais que eu visse o sofrimento dela, ainda dei espaço para acreditar que ela se recuperaria, e assim a nossa última despedida ficou com cara de até já.
A ausência dela teve, tem e terá muitos sabores e o que vivemos me dá força.
Não me vejo retornando num futuro próximo para a fila da tutoria canina, mas seguirei celebrando o amor que recebemos e dedicamos aos doguinhos.
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