Recebi uma ligação de minha mãe, em 03 de setembro de 2003, me dizendo que meu pai estava no hospital que ele ia precisar fazer uns exames, a minha resposta ao receber essa informação foi "Graças a Deus!". Minha reação foi destoante da que minha mãe esperava, mas coerente com a perspectiva de que ver meu pai fazer exames significava um cuidado preventivo para mim. Também com o fato de que ela me disse apenas uma parte do que de fato havia acontecido.
Foi só na ligação seguinte que recebi, que minha Tia então me disse que meu pai havia sofrido um Acidente Vascular Cerebral e corria risco de vida.
Podia ser, mas não foi a primeira vez que eu parei para refletir sobre a vida e a morte.
Declarada ou disfarçadamente a morte se fez presente na minha família desde que eu me lembro, pois com menos de dois anos (1 ano e 10 meses) eu compreendi que a minha avó materna havia deixado de ser uma presença, e passei a conviver com a ausência dela.
(A ausência de minha avó materna é a dor mais constante que conheço, e ainda assim me falta condições de dimensioná-la.)
Já a minha primeira memória fúnebre, foi deflagrada pela partida de minha bisavó materna em 21 de abril de 1994 (8 anos era a minha idade). Tenho escassas lembranças dela o que possivelmente justifica ter lidado com tranquilidade com a partida e ausência dela, ausência que não tenho como uma dor constante.
Aquele dia, em que meu pai teve o AVC, há quase vinte anos atrás, me fez refletir, ao saber que o meu pai estava entre a vida e a morte, eu me questionei se era melhor que ele vivesse ou morresse.
Cogitar que o meu pai poderia morrer não me parecia proibido, nem tão assustador quanto deveria ser (dentro da perspectiva que eu ainda estava descristalizando a imagem de pai herói), talvez inconscientemente eu já soubesse que meu pai era alguém que colecionava várias vidas e mortes.
Uma coleção que eu passei a reconhecer a partir daquele que foi o primeiro AVC que ele teve, a vida que ali se criou ele resistia em reconhecer porque deixou de ser a vida que ele tinha, e a morte podia ser reconhecida apenas por mim, embora aquela tenha sido apenas uma das vezes que parte de quem ele era deixou de existir.
Se eu já havia observado antes do AVC que a relação que eu tinha com o meu pai não era muito diferente da relação que eu tinha com qualquer outra pessoa que eu mal conhecia, após o AVC eu tive menos ainda opção de conhecê-lo ou de me relacionar com ele.
Ele viveu uma reinvenção de si, viveu uma "recuperação", viveu também uma intensa jornada de autodestruição e desamor próprio. Poderia ser facilmente reduzido a menção de que ele poderia estar num processo de depressão, que ele se negou a cuidar.
E para mim ele morreu, morreu o pai herói, o pai que eu achava que me ouvia e que eu desejei conhecer. Falar que ele morreu também é uma forma diferente de dizer que ele foi um dia após o outro violentando o que eu entendia como vivência, a ponto de viver com medo e com raiva do que eu via e vivia dentro da minha própria casa.
Meu pai queria que eu o ouvisse e falasse com ele, e eu dei a ele em retorno o silêncio.
Como poderia uma adolescente de 19 anos saber que um adulto de 58 anos agiria como se ela tivesse morrido para ele, por ter dado a ele o silêncio?
Um outro dia qualquer ele decidiu partir para outra casa, e fazer a minha mãe passar por um processo de divórcio como uma mãe que merecesse ser punida pela justiça - felizmente a justiça não concordou com ele.
Como uma filha que deixou de ser filha, eu atendi algumas ligações nos anos seguintes que eram para o meu irmão ou para minha mãe, como se eu fosse apenas qualquer pessoa atendendo a ligação que aquele pai e ex-marido fazia.
Para o meu pai eu voltei a ser "filha" em 2009, mas foi um retorno do que não teve mesmo um retorno. Ele me procurou, e me deixou saber que não o fez por conta própria mas porque a sua mãe havia lhe estimulado.
Eu fui ao retorno do que não havia retorno, encontrar um homem que continuava sem saber ser um pai que ouve ou um pai que se reconhecesse e pudesse se conhecer. Um homem que acreditou que se me fizesse ir ao encontro dele dizendo que me daria um presente me faria reconectar com ele.
Se tivessem me permitido eu poderia ter ido vê-lo no cemitério, mas como uma filha que deixara de ser o que jamais um filho deixa de ser, ficou então a não derradeira despedida daquele que era o meu pai.
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