segunda-feira, outubro 10, 2022

Você não é os seus erros

Como muitas pessoas fui criada, educada e sou constantemente estimulada a não errar. Se na vida pessoal isso me pesava, no trabalho que realizei entre 2012 e 2020 no Sesc Alagoas, isso me aterrorizava o tempo todo. Vivi 36 anos comprometida com o medo, a insegurança e a síndrome da impostora, sem perceber o quanto estava fechada para diferentes estímulos que tentassem me dizer que essa não era a melhor e nem a única opção. E sujeita aos diálogos que me propunham romper com a minha visão "pessimista", mas efetivamente incapaz de elaborar e contextualizar que não era o "pessimismo" que me limitava. 

Para ilustrar o nível do meu compromisso em me autocondenar e me autojulgar, certa vez coloquei em um cartaz o número do telefone da minha casa no lugar do telefone da unidade que trabalhava, ao me tocar disso um mês depois de distribuir o cartaz me senti incompetente, e carreguei vergonha por conta disso por um bom tempo, como tantas outras vergonhas das quais me tornei colecionadora.

Independente do tamanho do erro, como na rotina de trabalho eles estavam sempre sendo combatidos e silenciados, parecia só me caber me dizer que eu não era merecedora de ser vista pelos acertos, e eu me dizia que o meu valor era medido a partir do quanto eu era uma pessoa capaz de não errar ou de esconder muito bem os erros. Como também quanto eu era uma pessoa capaz de calar e de caber, o que eu pouco me achava capaz, e nem o queria fazer, mas me obrigava a ser capaz.

Era visível para as pessoas que eu tinha dificuldade de receber elogios, e que eu me autocondenava com frequência (o que ainda estou desaprendendo), mas a questão era muito mais profunda, eu me via como uma pessoa indigna de atuar como analista de audiovisual do Sesc Alagoas. 

Na terapia que fiz entre 2013 e 2017, criei um espaço seguro para as minhas inseguranças, meus medos, e para fortalecer e desenvolver a minha inteligência emocional, para lidar com a síndrome da impostora, com os sentimentos que as pressões vindas da instituição me causavam e como eles reforçavam os meus gatilhos e a minha autocrítica. Tinha assim um espaço para extravasar os meus sentimentos sem qualquer preocupação se eles estariam equivocados ou se caberiam. No qual recebi acolhimento e fui estimulada a acolher os meus erros,  e processar a minha limitação em me libertar das frustrações que colecionava comigo, com outras as pessoas e com o trabalho. Contudo o que conseguia trabalhar na terapia não dava conta de tudo que eu precisava fortalecer para me descomprometer com o medo, a insegurança e a síndrome da impostora.

A primeira oportunidade para me descomprometer com o medo veio em meio a pandemia em 2020, quando compreendi que estar como funcionária do Sesc Alagoas estava comprometendo ainda mais a minha saúde mental, o que também teve espaço seguro em meio ao meu retorno a terapia. 

Enfim, para me autocuidar, eu me permiti ouvir o medo por um outro viés, pois passei a temer adoecer pela obrigação de seguir com o trabalho que realizava até então. Foi quando escolhi iniciar o processo de romper o meu compromisso com os medos que tinham me feito normalizar tanta coisa que eu me submeti para caber naquele trabalho e na vida até ali.

Fui alertada, incansáveis vezes, a ter cuidado para não prejudicar a minha saúde por ser alguém que reclamava e falava sobre o que sentia - que era visto como uma atitude pessimista e derrotista para muitas pessoas que assim me reduziam-, no entanto, por mais que esses alertas tenham vindo com um ar de cuidado, hoje eu sei que isso também me estimulava a me moldar e a me silenciar, e que tem mais ligação com a necessidade de controlar o comportamento da outra pessoa do que é de fato um cuidado. 

Faz pouco mais de um ano que a minha percepção/análise sobre mim e sobre a minha relação com as pessoas e os trabalhos que tive e tenho, foi acolhida, empoderada, e ressignificada pelo meu encontro com o trabalho da pesquisadora norte americana Brené Brown, que identificou em sua pesquisa que o silêncio fortalece as vergonhas, e que uma ferramentas que contribuem para desenvolver a resiliência à vergonha é falar sobre ela com alguém que tenha conquistado a sua confiança.

Aprendi e me comprometi a voltar as obras de Brené - além de ir atrás de outras pessoas pesquisadoras-, na busca por seguir exercitando o meu comprometimento com o meu autocuidado, que implica em dar espaço ao que eu sinto, me responsabilizar pelo que sinto e faço, exercitar a autocompaixão e ser mais compassiva, acolher os meus medos, renovar sempre que possível meu compromisso com a coragem, não me anestesiar e nem deixar a impostora me aprisionar, entre outras coisas.

Pude me abrir para os meu sentimentos mais do que nunca, além de expandir também o meu compromisso com a curiosidade sobre o autoconhecimento, autocompaixão, empatia, e me senti capaz de investigar de forma mais ampla caminhos mais comprometidos com a minha saúde mental. 

Entendi não só que podia errar, e que isso não deveria me definir, como também que não deveria deixar que as outras pessoas me definissem pelos meus erros. E ainda me trabalho para me descomprometer com o perfeccionismo, algo que eu sempre busquei me distanciar, mas que ainda se faz presente pelo temor que encaro ao me propor a fazer, estar ou atuar nas pesquisas e trabalhos que desenvolvo, ou apenas ser autêntica.

Antes de acreditar que eu era capaz de me descomprometer com a prática de julgar as outras pessoas e me autojulgar, eu me comprometi com a empatia, que implicava em buscar me conectar com as pessoas, com escuta ativa, evitando julgamento, algo muito distante do que eu era obrigada a fazer ou conviver para caber no padrão da simpatia. Ao priorizar a empatia, ia exercitando frear os julgamentos.

Brené bem alertou que me comprometer com os resultados da pesquisa dela dava trabalho, incomodava as outras pessoas e dava vontade de desistir, ao mesmo tempo que possibilitava reconhecer que estamos amando e vivendo de todo coração e desejando persistir. Nas palavras dela:

"Optar por amar e viver de todo coração é um desafio. Você vai confundir, irritar e aterrorizar muita gente, inclusive a si mesmo(a). Em um minuto vai rezar para que a transformação pare e, no minuto seguinte, vai rezar para que nunca termine. Você também vai se perguntar como é possível sentir tanta coragem e tanto medo ao mesmo tempo. Pelo menos é assim que me sinto na maior parte do tempo… corajosa, apavorada e muito, muito viva." Trecho do livro "A Arte da Imperfeição" de Brené Brown.

Sei que é um processo diário, e que ainda preciso aprender a não me autojulgar, algo que fica perceptível quando estou falando com outras pessoas e recorro a apontar meus erros e meus limites incansavelmente. Como alento me apoio noutro trecho do livro A Arte da Imperfeição que precisei reler e transcrever para conseguir assimilar, e graças ao qual carrego na minha mente a imagem de uma clareira que tenho sido capaz de criar para me acolher.

 “Quietude não é nos concentrarmos no nada; trata-se de criarmos uma clareira. É abrirmos um espaço afetivamente desobstruído e nos permitirmos sentir, pensar, sonhar e questionar.
(...)
Se fizermos uma pausa por tempo suficiente para criar uma clareira emocional serena, as verdades de nossa vida invariavelmente nos alcançarão. Nós nos convencemos de que, se nos mantivermos ocupados e continuarmos em movimento, a realidade não nos atingirá. Assim, a verdade que aparece para nós é como às vezes nos sentimos cansados, amedrontados, confusos e sobrecarregados. Naturalmente, a ironia disso é que o que nos deixa esgotados é justamente a tentativa de ignorarmos a sensação de esgotamento. É esse o caráter autoperpetuador da ansiedade. Ela se alimenta de si mesma.”

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