quinta-feira, fevereiro 17, 2022

Quem fui na fila da tutoria canina

 Já me vi na fila da tutoria canina em três momentos na minha vida. No primeiro, ainda na adolescência, pedi um cachorro de presente. Não sabia cuidar de mim direito imagina dele, fora que a convivência com ele ainda foi recheada pelo medo que eu tinha de cachorro. Precisei assumir que não estava dando certo, e assim, o doguinho que na nossa casa foi batizado por mim como Ikki foi então doado para outros tutores.

A segunda vez, eu tinha 21 anos. Meu irmão, Lucas tinha mais proximidade com pets do que eu, assim foi adotado o Polo, batizado como Polanski Linklater Tarantino (por mim, claro), convivemos mais ou menos seis meses com Polo. Infelizmente ele foi atropelado na porta de casa no réveillon 2006/2007, após conseguir fugir do nosso quintal.

A terceira vez, eu tinha 22 anos, quando a baby Lolli chegou com todo seu charme. Nome de batismo que dei para ela, Lollipop Ava Gardner (2007 - 2022). Lucas ganhou a Lolli de presente, e foi sem dúvida o presente mais extraordinário que eu já ganhei.

Polo me ensinou a lidar com o meu medo de doguinhos, mas foi com a Lolli que eu definitivamente venci esse medo. Ela não tinha pretensão nenhuma de ensinar ninguém a ser tutor ou tutora dela. Não foi adestrada, mas tinha um instinto de autocuidado muito encantador.

A primeira morada de Lolli foi no quintal, ela viu que se tentou construir uma casinha para ela, mas nunca se concluiu. Ela tinha uma cadeira, pote de comida e água. Conviveu com galos, galinhas, pato, jabuti e inúmeros gatos. Poliamorosa e pansexual, Lolli amava e odiava vários gates ao mesmo tempo e sem distinguir gênero.

Para mim ser tutora de doguinho não era algo tranquilo. Principalmente porque me sentia cobrada a ser de uma determinada forma, aquela coisa de ter uma imagem padrão, junto a minha baixa estima e disponibilidade de me cobrar.

No sentido afetivo éramos livres, falava com a Lolli, convivia com ela quando desejava e/ou quando ela me chamava/chorava nos sete anos que ela morou no quintal. Já nos sete anos que ela morou dentro de casa, a gente ficou muito mais em contato, ela inclusive aprendeu a abrir a porta do meu quarto para entrar sempre que quisesse.

Era desafiador manter a higiene de Lolli, assim como aconteceu de estar tão desgastada com o trabalho/vida que me passei e deixei ela eventualmente sem estar com as vacinas atualizadas. Lidava com a vergonha e a culpa, me condenando, não me considerava uma boa tutora.

Estava muito disposta a estar com Lolli e observar ela, mas isso tinha ciclos e momentos. A pessoa que efetivamente cuidava diariamente de Lolli era minha mãe, Anna Helena.

Foram 14 anos de convivência com a Lolli, durante doze deles só foi necessário sair com ela para ir na clínica após o horário comercial em um momento, uma vez que ela foi mordida por um escorpião.

A ideia era cruzar ela com outro doguinho, mas não tive como fazer isso acontecer. Assim como não tive condições de castrar ela, principalmente por não conseguir me preparar para pagar e priorizar os cuidados com ela.

Assim, aos 13 anos ela teve um intenso mal estar e precisou ser castrada. Mais ou menos um ano após esse mal estar, me assustei em perceber que Lolli estava se desequilibrando e caindo sozinha. Saí com ela a meia-noite do domingo, 17 de outubro de 2021, de Uber com ela no colo, jurando que ela estava morrendo e depois foi que entendi que ela estava dormindo.

Chegando na clínica a veterinária não economizou e encheu a lista de possíveis diagnósticos: metástase, definitivamente foi o que mais me assustou. Ela observou que Lolli tinha nódulos nas mamas, sopro no coração, que estava acima do peso e por aí vai.

A menção do sobrepeso também pesou. Em específico porque esta veterinária e algumas outras quiseram justificar os desequilíbrios de Lolli por conta do sobrepeso. Além dos gatilhos já provocados em qualquer menção de que pessoas e/ou pet estão acima do peso. E a explicação para o desequilibro de Lolli nem era essa, ao ter pouco tempo depois dificuldade de se levantar sozinha, e ser examinada por uma neuro, ela ficou sob suspeita de hérnia de disco, e com diagnóstico de disfunção cognitiva.

Lolli estava frequentando até 2020 uma mesma pet shop, próxima de onde moramos, a qual a socorreu em 2020 quando ela precisou ser cadastrada com urgência. Por mais que eu seja muito grata aos cuidados que foram dados a ela, na cirurgia, pós-cirurgia e nos seis anos, ou mais, que ela foi atendida lá para banho e tosa. Não me senti acolhida pela linha defendida para os cuidados com cães idosos, a partir da visão de que o melhor seria cuidar de forma paliativa. E também não senti que a clínica compreendia o que os tutores de Lolli estavam vivendo em meio a pandemia.

Compreendi inclusive que eu demorei para entender que havia na medicina veterinária, aqueles veterinários que defenderiam opções de tratamento paliativas, e aqueles que defenderiam outras opções, inclusive algumas vistas como mais arriscadas.

Senti também na pele o quanto é custoso fazer exames, comprar remédios, arcar com cirurgia, pós-operatório, internação, consultas, e quanto mais as fazia mais parecia que tinha para fazer, e transparecia o quanto uma pessoa desempregada ou sem recursos fica impotente.

Eu como pessoa branca privilegiada tive dificuldades, principalmente por estar desempregada, cogitei várias vezes em fazer rifa ou financiamento coletivo, e não o fiz por vergonha. Me endividei e usei desesperadamente parte do recurso que tinha guardado.

Só entendi que não tinha conseguido expor uma das vivências mais angustiantes da minha vida e pedir publicamente ajuda, apenas no terceiro e último mês, em terapia, quando o meu psicólogo me disse que era lógico que eu pedisse ajuda.

E foi um choque, principalmente porque uma coisa que eu estava também fazendo era estudar sobre a vergonha através da leitura dos livros de Brené Brown. Mal tive tempo de lidar com a impossibilidade de dar voz a essa minha vulnerabilidade, uma vez que duas semanas depois, no dia 01 de fevereiro de 2022, Lolli veio a falecer.

Fiquei com desejo de escrever e por isso ainda aqui escrevo. Fiquei com desejo também de falar mais sobre cães idosos, desafios dos tratamentos caninos, e reflexões sobre o que é tutoria canina, o que por enquanto segue perdido. Eu só descobri muita coisa vivendo, possivelmente eu aprendi mais sobre tutoria nesses três últimos e intensos meses de convivência com Lolli, do que tive condições de me propor a aprender antes.

Foi necessário lidar com o diagnóstico de que ela estava com tumor no pulmão para que eu me revelasse para mim mesma alguém que não conseguiria aceitar que era válida a opção de deixar ela com o tumor, e abraçar os cuidados paliativos. Não me resignei a eles, pode ter ajudado a abreviar a vida dela ou não. Tinha mais que motivos para não submeter ela a cirurgia, mas ao mesmo tempo só conseguia sentir que eu estaria abraçando a esperança se arcasse com a cirurgia.

O tumor acabou sendo uma de muitas questões, tinha a anemia e a disfunção cognitiva também. E tinha apesar de querer cuidar dela, também uma vontade de estabelecer um limite, até também de desistir. 

Emanei para o universo um pedido de que Lolli não partisse no final de 2021, e adoraria como falava para ela que a gente ainda tivesse muito para viver juntas. Mas eu também dizia para ela nos momentos mais difíceis que entenderia se ela precisasse partir, e eu perdi a conta de quantas vezes me despedi dela nesses últimos meses.

A partida dela foi extremamente sofrida, e ainda assim foi difícil receber a confirmação de que ela havia partido. Por mais que eu visse o sofrimento dela, ainda dei espaço para acreditar que ela se recuperaria, e assim a nossa última despedida ficou com cara de até já.

A ausência dela teve, tem e terá muitos sabores e o que vivemos me dá força.

Não me vejo retornando num futuro próximo para a fila da tutoria canina, mas seguirei celebrando o amor que recebemos e dedicamos aos doguinhos.