terça-feira, agosto 29, 2006

Sessão Cancelada

Uma placa apontava as incertezas daquela noite. Cláudia não se assustou ao ver aquela inscrição “Projetor Quebrado – Sessão Cancelada”, já que compreendia que os equipamentos do “cineminha” eram precários e nos últimos tempos as exibições haviam se tornado ainda mais inconstantes.
- O que fazemos agora? Indagou ao grupo que avistara na sala de projeção, envoltos em discussões e brincadeiras.
- Oh, você veio? Não sabemos o que fazer Cláudia, junte-se a nós. Convidou-a Roberto.
Como ex-namorado de Cláudia, Roberto havia firmado uma forte amizade com ela, graças às cicatrizações promovidas pelo tempo e a contínua convivência ao fim do relacionamento. E era justo por um pedido dele que Cláudia havia comparecido ali, ela nem suspeitara dos imprevistos que estavam a rondá-la.
Roberto havia comentado sobre um amigo dele que estava interessado nela, e como um bom amigo, pretendia desenrolá-los. Ao ouví-lo comentar sobre seus planos e intenções para aquela noite, Cláudia não deu ênfase ao interesse do amigo de seu amigo, já que nem sabia de que se tratava. Contudo durante a conversa não foi acentuado que o rapaz também iria ao programa marcado por Roberto.
Cláudia há muito comentava com o amigo que não encontrava quem realmente a interessasse e que estava muito chateada em estar sozinha, entre tantas realizações que havia conquistado não conseguia disfarçar o quanto seus insucessos amorosos a decepcionavam.
Ao começar a conversar com Roberto, lá na sala de projeções, Cláudia sentia um ânimo diferente no amigo e começara a suspeitar do seu ar sorridente, começou a temer oque o seu ex parecia estar querendo aprontar e não sabia se ficava aflita ou se embarcava.
Tranqüilizou-se ao lembrar que se tratava do pretenso desenrolo, percebeu que poderia não ter sido apenas uma conversa fiada de Roberto, todavia, para evitar rejeições ou grandes expectativas resolveu direcionar uma certa indiferença a esse assunto. Roberto surpreendeu-a sendo prático e direto.
- E ai Clau, posso desenrolar?
- O que você quer que eu diga!? Você nem me disse de quem se trata... E outra vai acabar ficando forçado, não? Ele está sabendo disso!?
- Olha só, o Maurício deve suspeitar, afinal quando ele veio comentar comigo sobre você, não só para esclarecer a situação comigo, como para sondar quais eram as chances dele, eu expressei todo o meu apoio e entusiasmo.
- Porque esse nome não me é estranho! Espera esse Maurício não seria aquele que estudou no mesmo colégio que eu?
- Agora que você falou foi que eu liguei os pontos. Foi sim, só que ele terminou antes de você como é que você se lembra?
- E quem disse que eu me lembro?
- Bem eu sei que ele não lembra, ou se lembra não me disse. Bem, mas vamos lá falar com ele que o coitado deve estar doido para lhe conhecer. A ansiedade dominou-o ao te ver chegar.
- Aí, Roberto faz isso não. Ou melhor, não faz assim... Nem acredito no que eu vou dizer, no entanto, acho melhor você dizer para ele vir aqui falar comigo.
Maurício não acreditou quando viu Roberto afastar-se de Cláudia e dirigir-se até ele. Sua mente já havia deduzido tudo, mas o seu coração estava apertado. Não sabia como chegar até Cláudia, nem tinha certeza se comentar sobre os tempos de colégio faria bem a ele.
Maurício e Cláudia trocaram sorrisos enquanto ambos dirigiam-se ao um ponto de encontro, pois Clau não conseguiu ficar onde estava esperando. E por nervosismo acabou indicando que continuassem a andar até que alcançassem um ambiente mais calmo.
- E ai, Maurício, deixamos para comentar sobre os tempos de colégio quando a situação for menos impessoal?
- Nem sei Cláudia, porque ao vê-la comecei a questionar-me sobre aqueles e nem sei bem se as lembranças me fazem bem ou mal.
- Eu vou ser indiscreta e dizer que fico surpresa em ouvir você dizendo uma coisa dessas, você era tão popular na época do colégio.
- Eu me arrependo um tanto disso, quem sabe não foi por isso que não nos conhecemos naquela época.
- Falando assim parece até que você já sentia algo por mim desde os tempos de colégio. Eu devo confessar que compartilhava do rebuliço predominante nas meninas que viviam a suspirar ao vê-lo...
- Hum... Então esse é o momento para confissões?
- Não. Mas com certeza estar conversando agora com você depois de mais de dez anos é uma revelação no mínimo.
- Você fala assim, mas ao lhe ver hoje senti como se não fosse o tempo de colégio que nos ligasse, não sei se um algo mais, contudo, com certeza você tem um fascínio bem particular sobre mim.
Cláudia quis dizer-lhe milhares de coisas, no entanto, preferiu aproximar-se mais dele e transformar em beijos as palavras que ainda teimara em proferir. Os beijos e as palavras foram intensamente retribuídos por Maurício.
A noite terminou e Cláudia não aceitou carona dele, receava que Roberto fosse precisar de sua ajuda em ajustes que combinaram de ir fazer na casa dela. Quando estava retornando no carro de Roberto, Clau recordou-se de não ter pego o número do telefone de Maurício, e acabou achando que tinha sido melhor assim, estava contente, mas uma confusão enorme pesava em sua cabeça ao lembrar do que acontecera naquele encontro.
- Clau, você é fogo, viu? Fazendo um jogo no começo e depois entrou de cabeça que quase deixou o coitado do Maurício sem fôlego...
- Para com isso Roberto. Nem me fala em cabeça, que as idéias ainda tão rodando aqui na minha. Eu estou me sentindo estranha. Conhecer o Maurício do colégio e encontrá-lo agora depois de tanto tempo deu um nó nos meus pensamentos.
- Ihhhhhh! Lembre-se que quem pensa demais não casa. Nem venha me dizer que deveria ter pensado bem sobre o nosso namoro, ou sobre essa noite com Maurício.
Roberto buscou algumas coisas na casa de Cláudia, não chegaram a um consenso sobre a confusão de Clau, porém ela sabia que Roberto estava certo e agradecia por toda aquela noite e por todas as palavras que ele estava a dizer, mas como sempre não queria dar o braço a torcer e preferiu manter a eterna “arenga”.
Dormiu sem decidir-se por querer encontrar Maurício o mais rápido possível ou não apostar em um relacionamento com ele, entre tantas outras possibilidades que rondavam seu pensamento. As inseguranças embalaram o seu sono e não a abandonaram ao amanhecer. No entanto, ao ter o seu café da manhã interrompido pelo toque do telefone, Clau desejou intensamente que fosse Maurício e teve de disfarçar a alegria ao constatar que era ele.
- Oi, Cláudia. Não vou ser hipócrita e pedir desculpas porque não me arrependo de ter atrapalhado o que quer que seja para poder lhe falar o que foi difícil não ligar durante a madrugada para lhe dizer...
- Oi, Maurício. É sem hipocrisia?! Então, não vou esconder que adoraria se você viesse até aqui me dizer.
(...) – Maurício?!
O telefone havia sido desligado e Cláudia aterrorizada não imaginava o que teria acontecido, até receber uma mensagem em seu celular: “Chego em 10 min, não me despedi por isso. Desculpa! Guarda um pouco do café para mim”. Foi o tempo de Clau dar uma geral na casa e ligar para o trabalho avisando que chegaria atrasada.
Nem esperou Maurício entrar em sua casa, Cláudia foi esperá-lo na porta ao distinguir o estacionar do carro dele. Os dois se encontraram na entrada como se não houvessem se visto há séculos, conversaram enquanto tomavam café, programaram tantas coisas que nem lembraram de ir trabalhar.
Maurício e Cláudia nunca conseguiram desvendar se o encantamento que houvera entre eles estava relacionado com os tempos de colégio ou se tinha surgido avassaladoramente naquela “sessão cancelada”. Relutaram em aproveitar sem pensar nos motivos ou conseqüências, todavia o ritmo que os envolvia era repleto de espontaneidade e quando estava juntos, ter preocupações sobre o que estava ao redor ou o que viria depois era impossível.

quinta-feira, agosto 17, 2006

Observar tem o seu valor

Larissa Lisboa
Iara andava na chuva numa manhã sem planos, direção ou clareza. Pensava em fugir, brigar, extravasar, o “nada” que sentia, de todas as maneiras, porém, sem forças ou apoio acabou por entregar-se à confusão.
Fazia apenas duas horas que ela havia acordada, ajeitado as coisas e partido em busca de alguém que não estivesse dormindo, já que todos em sua casa o faziam. Pegou o ônibus e começou a procurar em seu ciclo de amigos quem poderia acudí-la e a sacudir de volta para a realidade.
Quando avistou o mar resolveu descer no ponto menos movimentado e caminhar um pouco. Caminhou por muito mais que meia hora absorta e completamente concentrada em si, a chuva tentava reconectá-la, mas ela custou para sentir-se encharcada e nem se incomodou com a situação.
Iara estava imersa em conflitos novos e outros eternos, numa mistura de tristeza, medo, dúvida, saudade e alegria. Essas imersões eram comuns em seu cotidiano, crises existenciais não a amedrontavam, contudo nunca houvera um aprofundamento e um baixo-astral como o que ela havia embarcado naquela manhã. Não chorava, nem expressava um sentimento definido através das feições em seu rosto.
Pelos tropeços e poças d’água pisadas era possível perceber o quanto ela estava distante, entretanto, quanto mais a caminhada se prolongava menos transeuntes circulavam pelo seu caminho, não houve quem a notasse e essa ausência não a perturbava.
Não era incomodo ter de dobrar na rua seguinte ou evitar uma determinada esquina, subindo e descendo calçadas, já que seus outros mecanismos estavam tão aflorados quanto os de sua mente. A roupa pesava, a chuva diminuía ou aumentava bruscamente, Iara não conotava a medida desses fatos, nem de tantos outros interligados ou perdidos em seus pensamentos.
A transparência da chuva, o frio das gotas que tocavam o seu braço e o peso da roupa eram desfrutados por ela como uma consolação diante da imersão que vivia. E então deparou-se em um lugar que nunca aparentara estar tão cativante quanto naquele momento, retornou de seus tormentos e começou a observar o local onde resolvera ficar, um ponto de ônibus vazio.
Na verdade aquele era o mesmo de onde ela havia iniciado sua jornada de milhões de segundos e que havia durado quase três horas. Não parara por estar cansada fisicamente, todavia pela exaustão que sentia em sua mente. Mal sentiu a ausência da chuva ao sentar-se no banco do ponto. Começou a aguçar seus sentidos em um novo despertar por meio do vento que se tornava mais gelado ao encostar-se a sua pele ainda muito molhada. Constatou que não tinha pretensões de pegar mais nenhum ônibus, e pensava em não dar mais passo algum.
Gostou da tranqüilidade que transpirava do pequeno fluxo de carro nas ruas, de quase não ter pessoas ao seu redor, pois ainda estava chovendo, e a bela vista que finalmente se permitiu ter, era a contemplação da paisagem daquela praia que tanto conhecia, mas que estava mais bonita naquele dia, mesmo sem estar convidativa e toda acinzentada.
Ao retornar o mergulho no turbilhão de seus pensamentos percebeu finalmente o cansaço de seu corpo, não foi difícil lutar contra a exaustão de sua mente, pois as dores físicas eram mais persistentes.
Iara desviou-se de seus pensamentos mais uma vez ao conseguir distinguir um vulto que há alguns segundos estava a revelar-se diante de seus olhos, a chuva não permitia que ela tivesse certeza de quem era, mas quanto mais a imagem se formava perante os seus olhos o coração dela saltitava.
Distraiu-se do vulto ao receber um banho de uma poça por onde um carro havia passado em frente ao ponto de ônibus. Ao procurar o vulto, não o via mais tão indecifrável. Enfim reconheceu sua voz, embora não tenha entendido suas palavras, era César, uma pessoa que não encontrava há muito tempo e nem saberia se ainda teriam o que conversar.
César e Iara não sabiam com o que ficar mais abismados se com o fato de ambos estarem molhados e com demonstrações de exaustão ou se porque aquele encontro poderia ajudá-los ou deixá-los ainda pior.
Ao ficarem cara-a-cara, esqueceram das palavras e das dúvidas por alguns segundos, trocaram sorrisos e sentaram lado a lado no ponto de ônibus. Foi revigorante para ambos passar o restante daquele dia juntos conversando, podia ser que não recuperassem a amizade ou o amor que há mais de dois anos haviam vivenciado e parecia ter sido findado.
Iara percebeu que César compreendia tudo o que ela tinha vivenciado nas primeiras horas daquele dia e assim deduzia que aquele “César” que reencontrara era com certeza mais interessante e forte do que o ela conhecera. César não quis dar lições de vida para ela, pois achava que tinha mais a aprender com aquela Iara, deslumbrante que então observava. Surpreendia-se por ainda ter admiração pela capacidade que ela continuava tendo de fazê-lo sentir-se completo e interessado em discutir tudo e qualquer coisa.
Ao avaliarem os fatos que haviam promovido aquele encontro relutaram em crer que ambos estavam a procurar um pelo outro, pois aquela praia que avistavam do ponto de ônibus havia sido o palco de toda a história de amor e da amizade dos dois.
A fome os levou a caminhar até a lanchonete mais próxima, depois caminharam sem rumo, só parando para tomar água de coco e em seguida para almoçar num restaurante em que nenhum deles havia voltado desde que deixaram de se falar. Também jantaram juntos. Sentiram como se aqueles dois anos estivessem sendo recuperados nas 20 horas em que não se desgrudaram, não pouparam brigas, mágoas ou lágrimas, estavam dispostos a finalizar renovados aquele reencontro.
Queriam continuar se comunicando, mas sem apegos ou rigidez, pois inconscientemente prometeram que a espontaneidade deveria ser a ponte de ligação entre eles, até que estivessem sintonizados o suficiente para decidirem se aquilo que aflorava da ligação deles era forte e eterno como presenciaram naquelas 20 horas.
Aquele dia não foi o único, foi o incentivador de muitos e pode ser superado por tantos outros. César e Iara passaram a alimentar a certeza, de que mesmo que a história deles não fosse revivida, ela nunca mais seria esquecida.
Muitas coisas ficaram ou continuariam incertas, apagadas ou seriam reavivadas para compreender tantas mágoas, dúvidas e imersões que assaltavam Iara no decorrer de sua vida. Para ela não cabia e nem queria determinar se aquilo era um ciclo, se sofrer era parte da vida, ou se só conseguia amadurecer através dos conflitos em seus pensamentos. Pois o que guardara e aprendera daquele dia permitiu que o estivesse ou submergisse do passado, do presente ou do futuro em sua vida e mente a encontrasse pronta e desejosa de vivenciá-los dali por diante.