quarta-feira, novembro 15, 2023

"Nós nascemos nus, e o resto é Drag"

"We're all born naked

And the rest is drag"

Trecho da letra da música "Born Naked" de Rupaul


"Nós nascemos nus, e o resto é Drag" é a tradução deste trecho da música "Born Naked" (Nascer nu, tradução livre) de Rupaul. Ru ou mamaRu para as pessoas íntimas ou fãs de DragRace, é segundo a wikipédia: "RuPaul Andre Charles (San Diego, 17 de novembro de 1960), mais conhecido como RuPaul ou Mãe das Drags, é um ator, drag queen, supermodelo, autor e cantor americano".


Eu não conhecia Rupaul ou seu trabalho, até começar a assistir Drag Race no final de 2016. O reality show de competição entre artistas drag americando, Rupaul's Drag Race teve sua primeira temporada em 2009, e eu só vi comentários sobre ele no feed do meu Facebook por volta de 2015. E via o que aparecia com desconfiança e preconceito pois eu fazia parte das pessoas que normalizam ter medo dar arte Drag ou de pessoas e iniciativas que desafiam a normalidade.


Até que me permiti acolher a minha curiosidade mais que o meu medo, e comecei a assistir a segunda temporada de Rupaul's Drag Race pela Netflix, quando vi não queria mais parar e assisti com prazer e gratidão todos os episódios das oito temporadas que lá estavam disponibilizados na época (de 2ª temporada a 9ª). E ainda fui atrás de ver os episódios da primeira temporada em outro canal.

Não apenas me tornei fã da arte Drag, fã de Rupaul, e pude aprender sobre criatividade e humanidade, mas principalmente passei a ter como referência gestos de vunerabilidade e de acolhimento de uma forma que ainda me parece desafiador encontrar na maior parte das vezes que os busco.

Eu perdi a conta de quantas temporadas eu vi nestes sete anos,  pois além de ter visto todas as temporadas da Rupaul's Drag Race que já está na 15ª, também vi todos os episódios das sete temporadas de All Stars. Sem falar das franquias: Rupaul's Drag Race UK, Drag Race Holanda, Rupaul's Drag Race Down Under, Canada's Drag Race, Drag Race França, Drag Race Espanha, Drag Race Itália, Drag Race Tailândia, Drag Race UK vs the world, RuPaul's Secret Celebrity Drag Race, Canada's Drag Race: Canada vs. the World e Drag Race México.

Acho que depois de observar a quantidade de franquias que eu assisti, entre as listadas acima, fica mais fácil de entender que é uma conta difícil de fechar.

Nos últimos anos foi semeando em mim um desejo de ver também uma franquia do Drag Race no Brasil, e enquanto ela não chegava eu fui vendo todos os realities Drags que tive acesso como Queen stars Brasil e Caravana das Drags. Achava massa quando via alguma artista Drag brasileira entre as participantes de alguma franquia do Drag Race, mas queria muito ver um Drag Race todo brasileiro.

Ano passado eu acompanhei outro novo reality Drag internacional chamado Queen of the universe, que tinha entre as participantes a cantora Drag brasileira Grag Queen, e eu vi incrédula a Grag não apenas chegar na final mas ser coroada Queen of the universe.

E este ano vi várias participantes Drags brasileiras nas franquias internacionais do Drag Race e vi que finalmente tb rolaria a primeira temporada do Drag Race Brasil. Assisti ansiosa o anúncio das queens, dos jurados, e acompanhei nos últimos três meses os doze episódios, colecionando fortes emoções e agradecendo muito em poder testemunhar e fazer parte da tão desejada e merecida celebração e visibilização da Drag brasileira dentro e fora do Drag Race.

Eu vibrei também com Queen stars Brasil e Caravana das Drags, mas deu para ver que o Drag Race segue se provando como um reality que sabe se diferenciar e que já acessa, conecta e abre muitos caminhos para as participantes das franquias pelo mundo, assim como também está abrindo para as Drags brasileiras.

Quando comecei a ver o Drag Race Brasil, pelo episódio de estreia que foi duplo, só se concluindo no segundo episódio, eu fiquei com um pouco de medo, senti como se a pressão colocada nas participantes de cara já parecesse maior do que as que eu vi que rolava nas demais franquias. Senti também um pouco de dificuldade com a apresentação de Grag Queen inicialmente. Mas confesso que no meio da temporada ou até já no terceiro ou quarto episódio, eu já estava fã do Drag Race Brasil, e me surpreendendo positivamente com a apresentação de Grag Queen.

Acredito que a seleção das participantes não se comprometeu em selecionar participantes de forma mais descentralizada, e espero que isso seja mais cuidado para uma próxima edição. Mas compreendo que foi uma seleção que me apresentou muitas artistas Drag talentosíssimas, que eu sou muito grata em poder continuar buscando acompanhar e celebrar, entre elas todas, as cariocas que foram as que mais demonstraram também vulnerabilidade e persistência.


Deixo aqui um reconhecimento também da importância de ver as Drags brasileiras negras representadas, e muito bem representadas tanto no Drag Race Brasil, quanto nos demais realities Drags brasileiros que já assisti, e dizer que cabe que haja ainda mais pessoas não brancas em todos o realities e em todos os lugares.


sexta-feira, setembro 22, 2023

Sobre persistir e desistir

Como você lida com a desistência? Você se permite desistir? Você acolhe quando outras pessoas desistem? 

Não sei quem me ensinou ou quantas vivências possam ter me dado o aprendizado de que eu não devia me dar a permissão de desistir, que eu tinha que me comprometer independente da situação em persistir.

Trago como exemplo a vivência que tive no meu primeiro emprego. Em 2008, após concluir a graduação em jornalismo, eu me senti perdida, e sem saber como procurar uma oportunidade de trabalho. Eis que um primo me chamou para trabalhar num site jurídico que ele queria criar, e eu fui trabalhar na Datalex recebendo um salário mínimo que na época era R$ 415,00 (nos primeiros seis meses sem a carteira assinada recebia metade disso).

Fui trabalhar porque era esse trabalho ou nenhum outro (porque eu me sentia incapaz de buscar e também porque só surgiu um outro convite enquanto eu estava lá). 

E foi assim que eu permaneci dois anos na Datalex, gerenciando o site Datajus, trabalhando como assessora de comunicação e gestora do site e suas redes sociais, e sendo remunerada como auxiliar de escritório. Foi uma oportunidade de aprendizado, que eu consegui potencializar, ao buscar fazer naquela época a especialização em Tecnologias Web para Negócios pelo Cesmac. 

Não considerava pedir demissão, mesmo que desejasse ir para outro emprego, mesmo quando comecei a ver surgir outra oportunidade de trabalho. Porque estava aprisionada entre a culpa e a gratidão. Equivocadamente eu acreditava que seria ingrata se pedisse demissão, e que estaria prejudicando o projeto também, além de deixar o primo que me deu aquela oportunidade na mão.

Belo foi o dia que o primo me comunicou que iria descontinuar o site, e me perguntou se eu desejava continuar na Datalex fazendo digitalização de publicações do Diário Oficial. Fiquei imensamente grata que ele tomou aquela decisão e que eu pude assim ter coragem de dizer que preferia não permanecer trabalhando na Datalex (lembro de dizer que preferia não continuar como se não me fosse permitido, com vergonha e culpa de querer me desistir).

Já estava contratada temporariamente em outra oportunidade de trabalho, que foi o que me deu coragem e algumas permissão. Conciliei por meses a permanência em ambas, por medo também de desistir de um emprego celetista (CLT) para uma prestação de serviço com data para terminar.

Passar dois anos e meio na Datalex foi persistir e desistir ao mesmo tempo. Persistir num trabalho que eu estranhava, mas me ensinou que eu era mais capaz do que eu reconhecia. E desistir porque eu não dava espaço para o meu desejo de estar em outro lugar fazendo algum outro trabalho em cultura ou enquanto comunicadora.

Parte da minha resistência de desistir do trabalho na Datalex tinha como combustível o medo, medo do desconhecido, de desagradar e de ser julgada.

Desistir ou ver alguém desistir é desconfortável, principalmente se o que esperamos de nós e das outras pessoas é que elas não se permitam desistir. Se a gente não se acolhe quando desiste é mais difícil que estejamos abertos para acolher a desistência de outra pessoa.

Tendemos a resistir a mudança, e a ver as ações como se elas definissem as pessoas. Eu me via como uma pessoa medrosa até dois anos atrás, porque eu era mais comprometida em sentir medo do que em cultivar a minha coragem. Mas principalmente porque eu acreditava que se eu sentia medo era porque eu não era corajosa. 

Aprendi que sou medrosa e corajosa, e que uma coisa não anula a outra. E a ver a desistência como uma possibilidade, como uma escolha saudável, como uma ação que pode ser acolhida quando eu sentir que preciso tomá-la. Ainda preciso me trabalhar mais para acolher tanto a minha desistência quando a desistência das outras pessoas.

Isso significa que eu desisti de persistir, não, isso significa que hoje eu posso dar espaço para que persistir seja mais possível, mais saudável, que não seja sempre uma obrigação ou a única opção; e principalmente, que posso me permitir ser quem sou, me dar espaço para me cuidar quando persisto e quando desisto.

quinta-feira, setembro 21, 2023

Poemas (des)bloqueados

 Autoria: Larissa Lisboa


Poesia Bloqueada

Entre a poesia e o teclado

há uma tela

cato poesia enquanto localizo vogais e consoantes

na busca em transformar dígitos em palavras

notificação: chegaram 5 e-mails

resisto, respiro, volto as vogais, consoantes, dígitos, palavras

para que o poema não me largue

notificação: 01 mensagem, 01 curtida, 05 atualizações de app disponíveis

esqueço o que estou fazendo  

várias janelas abrem na tela e na minha cabeça

notificação: poesia bloqueada


Poema Desbloqueado

Entre a poesia e a caneta não tropeço nas telas, fecho as janelas e ignoro as notificações

a caneta e o papel me dão o chão para exercitar voz, escuta, atenção e criação

e silenciar o que tente me afastar deles

me levam a desbloquear poemas

ressignificar preocupações

ao final do primeiro, segundo e terceiro versos

pode ainda me falta poesia

posso ainda estar descrente 

posso persistir ainda descrente 

escrever, reescrever versos frágeis e bloqueados

posso escrever sobre bloqueios e desbloquear

ler, reler, reescrever, rasurar e reescrever

poemas (des)bloqueados


Escrito e reescrito em 21/09/2023

quarta-feira, julho 05, 2023

Era o meu pai

Recebi uma ligação de minha mãe, em 03 de setembro de 2003, me dizendo que meu pai estava no hospital que ele ia precisar fazer uns exames, a minha resposta ao receber essa informação foi "Graças a Deus!". Minha reação foi destoante da que minha mãe esperava, mas coerente com a perspectiva de que ver meu pai fazer exames significava um cuidado preventivo para mim. Também com o fato de que ela me disse apenas uma parte do que de fato havia acontecido. 

Foi só na ligação seguinte que recebi, que minha Tia então me disse que meu pai havia sofrido um Acidente Vascular Cerebral e corria risco de vida.

Podia ser, mas não foi a primeira vez que eu parei para refletir sobre a vida e a morte. 

Declarada ou disfarçadamente a morte se fez presente na minha família desde que eu me lembro, pois com menos de dois anos (1 ano e 10 meses) eu compreendi que a minha avó materna havia deixado de ser uma presença, e passei a conviver com a ausência dela.

(A ausência de minha avó materna é a dor mais constante que conheço, e ainda assim me falta condições de dimensioná-la.)

Já a minha primeira memória fúnebre, foi deflagrada pela partida de minha bisavó materna em 21 de abril de 1994 (8 anos era a minha idade). Tenho escassas lembranças dela o que possivelmente justifica ter lidado com tranquilidade com a partida e ausência dela, ausência que não tenho como uma dor constante.

Aquele dia, em que meu pai teve o AVC, há quase vinte anos atrás, me fez refletir, ao saber que o meu pai estava entre a vida e a morte, eu me questionei se era melhor que ele vivesse ou morresse.

Cogitar que o meu pai poderia morrer não me parecia proibido, nem tão assustador quanto deveria ser (dentro da perspectiva que eu ainda estava descristalizando a imagem de pai herói), talvez inconscientemente eu já soubesse que meu pai era alguém que colecionava várias vidas e mortes.

Uma coleção que eu passei a reconhecer a partir daquele que foi o primeiro AVC que ele teve, a vida que ali se criou ele resistia em reconhecer porque deixou de ser a vida que ele tinha, e a morte podia ser reconhecida apenas por mim, embora aquela tenha sido apenas uma das vezes que parte de quem ele era deixou de existir.

Se eu já havia observado antes do AVC que a relação que eu tinha com o meu pai não era muito diferente da relação que eu tinha com qualquer outra pessoa que eu mal conhecia, após o AVC eu tive menos ainda opção de conhecê-lo ou de me relacionar com ele.

Ele viveu uma reinvenção de si, viveu uma "recuperação", viveu também uma intensa jornada de autodestruição e desamor próprio. Poderia ser facilmente reduzido a menção de que ele poderia estar num processo de depressão, que ele se negou a cuidar.

E para mim ele morreu, morreu o pai herói, o pai que eu achava que me ouvia e que eu desejei conhecer. Falar que ele morreu também é uma forma diferente de dizer que ele foi um dia após o outro violentando o que eu entendia como vivência, a ponto de viver com medo e com raiva do que eu via e vivia dentro da minha própria casa.

Meu pai queria que eu o ouvisse e falasse com ele, e eu dei a ele em retorno o silêncio. 

Como poderia uma adolescente de 19 anos saber que um adulto de 58 anos agiria como se ela tivesse morrido para ele, por ter dado a ele o silêncio? 

Um outro dia qualquer ele decidiu partir para outra casa, e fazer a minha mãe passar por um processo de divórcio como uma mãe que merecesse ser punida pela justiça - felizmente a justiça não concordou com ele.

Como uma filha que deixou de ser filha, eu atendi algumas ligações nos anos seguintes que eram para o meu irmão ou para minha mãe, como se eu fosse apenas qualquer pessoa atendendo a ligação que aquele pai e ex-marido fazia.

Para o meu pai eu voltei a ser "filha" em 2009, mas foi um retorno do que não teve mesmo um retorno. Ele me procurou, e me deixou saber que não o fez por conta própria mas porque a sua mãe havia lhe estimulado. 

Eu fui ao retorno do que não havia retorno, encontrar um homem que continuava sem saber ser um pai que ouve ou um pai que se reconhecesse e pudesse se conhecer. Um homem que acreditou que se me fizesse ir ao encontro dele dizendo que me daria um presente me faria reconectar com ele.

Um homem que eu passei dias, meses e anos para me libertar.

Eu ainda o vi duas vezes na última década, na última ele quis o meu perdão e eu o dei. 

Se tivessem me permitido eu poderia ter ido vê-lo no cemitério, mas como uma filha que deixara de ser o que jamais um filho deixa de ser, ficou então a não derradeira despedida daquele que era o meu pai.